André Gadanho, Raquel Guimarães, João Abrantes
O recente projecto de construção de um elevador de acesso à Sé Catedral de Lisboa, entre as Escadinhas das Portas do Mar e a Rua das Cruzes da Sé, uma zona da cidade com vários arqueossítios de monta nas proximidades, como a Rua dos Bacalhoeiros, a Casa dos Bicos e os Claustros da Sé, motivou a realização de uma escavação arqueológica durante o ano de 2020, de modo a caracterizar os possíveis contextos arqueológicos aí existentes.
A última fase destes trabalhos concen¬trou-se ao longo do percurso pedonal em escadaria das Escadinhas das Portas do Mar – assim conhecido pela existência de um acesso à cidade muralhada – a Cerca Fernandina – que em tem¬pos se abriam directamente para o rio Tejo, e que ainda subsiste nos dias de hoje. A rampa actual vence um forte des¬nível de cerca de 6 metros de altitude, numa extensão de 15 metros, que termi¬na na base de um imponente muro de contenção de época Moderna – que ser¬viu para um significativo alargamento do Adro da Sé. A escadaria pública interven¬cionada, edificada em época Moderna, surge implantada sobre um terreno pre¬viamente contido em período romano. A escavação permitiu perceber que, neste período, o topo deste desnível se encon¬trava alguns metros mais a Norte, crian¬do provavelmente um barranco que se precipitava sobre a margem do rio, per¬meável à erosão. A intervenção incidiu então sobre uma série de depósitos de aterro retidos por, pelo menos, duas es¬truturas de contenção dos terrenos e de travamento das rochas em desagregação da colina sobranceira à Catedral, que encontrámos arrasadas pela escadaria e rampa de acesso à Sé. Estes depósitos terão aqui sido formados na sua maioria com detritos provenientes das áreas residenciais situadas nas proxi¬midades, bem como com descartes de material anfórico proveniente da actividade portuária que ocorreria nesta área da orla ribeirinha do Tejo.
Esta intervenção permitiu, portanto, além de alguns escassos vestígios materiais de época Moderna, a identificação de vários contextos estratigráficos de época Romana, cujo espólio abarca um espaço temporal que vai desde o período tardo-Republicano até à Antiguidade Tardia. Destaca-se, o material cerâmico alto-Imperial, enquadrável, na sua quase totalidade, no séc. I d.C., através da presença de terra sigillata, paredes finas e lucernas, e uma quantidade considerável de material anfórico, tendo-se ainda exumado vários fragmentos de estuque pintado e material de construção.
Estes produtos de importação atestam um fluxo comercial já significativo a partir dos principados de Augusto e Tibério, que chegariam a Olisipo por via marítima a partir de outros pontos do Império como a Península Itálica, o Sul da Gallia e a Baetica, usufruindo das boas condições de navegabilidade que o estuário do rio Tagus proporcionava. A presença maioritária de terra sigillata de tipo itálico e sudgálico, em contraste com a escassa presença de sigillata hispânica, são testemunhos de um comércio dinâmico e de longa distância nos momentos iniciais do Alto-Império, nomeadamente para um período que vai até aos Flávios. Constituindo-se Olisipo como o principal porto da Lusitania, é inegável a sua função como centro redistribuidor destas cerâmicas para o ager olisiponensis, bem como para outros pontos da província. É igualmente essencial o papel do rio Tagus, pelas suas condições de navegabilidade, como via fluvial para o abastecimento de centros de consumo mais distantes da orla atlântica.
Pretende-se assim dar a conhecer os resultados obtidos pelo estudo deste espólio, com destaque para algumas marcas de oleiro em terra sigillata ainda não conhecidas em Lisboa, procurando contribuir para um melhor conhecimento das dinâmicas comerciais em Olisipo no decurso do séc. I d.C.